18.3.08

Boteco

Eu sou meio intelectual, meio de esquerda, por isso freqüento bares meio
ruins. Não sei se você sabe, mas nós, meio intelectuais, meio de esquerda,
nos julgamos a vanguarda do proletariado, há mais de cento e cinqüenta
anos. (Deve ter alguma coisa de errado com uma vanguarda de mais de cento
e cinqüenta anos, mas tudo bem).

No bar ruim que ando freqüentando ultimamente o proletariado atende por
Betão - é o garçom, que cumprimento com um tapinha nas costas, acreditando
resolver aí quinhentos anos de história.

Nós, meio intelectuais, meio de esquerda, adoramos ficar "amigos" do
garçom, com quem falamos sobre futebol enquanto nossos amigos não chegam
para falarmos de literatura.

- Ô Betão, traz mais uma pra a gente - eu digo, com os cotovelos apoiados
na mesa bamba de lata, e me sinto parte dessa coisa linda que é o Brasil.

Nós, meio intelectuais, meio de esquerda, adoramos fazer parte dessa coisa
linda que é o Brasil, por isso vamos a bares ruins, que têm mais a cara do
Brasil que os bares bons, onde se serve petit gâteau e não tem frango à
passarinho ou carne-de-sol com macaxeira, que são os pratos tradicionais
da nossa cozinha. Se bem que nós, meio intelectuais, meio de esquerda,
quando convidamos uma moça para sair pela primeira vez, atacamos mais de
petit gâteau do que de frango à passarinho, porque a gente gosta do Brasil
e tal, mas na hora do vamos ver uma europazinha bem que ajuda.

Nós, meio intelectuais, meio de esquerda, gostamos do Brasil, mas muito
bem diagramado. Não é qualquer Brasil. Assim como não é qualquer bar ruim.
Tem que ser um bar ruim autêntico, um boteco, com mesa de lata, copo
americano e, se tiver porção de carne-de-sol, uma lágrima imediatamente
desponta em nossos olhos, meio de canto, meio escondida. Quando um de nós,
meio intelectual, meio de esquerda, descobre um novo bar ruim que nenhum
outro meio intelectual, meio de esquerda, freqüenta, não nos contemos:
ligamos pra turma inteira de meio intelectuais, meio de esquerda e
decretamos que aquele lá é o nosso novo bar ruim.

O problema é que aos poucos o bar ruim vai se tornando cult, vai sendo
freqüentado por vários meio intelectuais, meio de esquerda e
universitárias mais ou menos gostosas. Até que uma hora sai na Vejinha
como ponto freqüentado por artistas, cineastas e universitários e, um belo
dia, a gente chega no bar ruim e tá cheio de gente que não é nem meio
intelectual nem meio de esquerda e foi lá para ver se tem mesmo artistas,
cineastas e, principalmente, universitárias mais ou menos gostosas. Aí a
gente diz: eu gostava disso aqui antes, quando só vinha a minha turma de
meio intelectuais, meio de esquerda, as universitárias mais ou menos
gostosas e uns velhos bêbados que jogavam dominó. Porque nós, meio
intelectuais, meio de esquerda, adoramos dizer que freqüentávamos o bar
antes de ele ficar famoso, íamos a tal praia antes de ela encher de gente,
ouvíamos a banda antes de tocar na MTV. Nós gostamos dos pobres que
estavam na praia antes, uns pobres que sabem subir em coqueiro e usam
sandália de couro, isso a gente acha lindo, mas a gente detesta os pobres
que chegam depois, de Chevette e chinelo Rider. Esse pobre não, a gente
gosta do pobre autêntico, do Brasil autêntico. E a gente abomina a
Vejinha, abomina mesmo, acima de tudo.

Os donos dos bares ruins que a gente freqüenta se dividem em dois tipos:
os que entendem a gente e os que não entendem. Os que entendem percebem
qual é a nossa, mantêm o bar autenticamente ruim, chamam uns primos do
cunhado para tocar samba de roda toda sexta-feira, introduzem bolinho de
bacalhau no cardápio e aumentam cinqüenta por cento o preço de tudo. (Eles
sacam que nós, meio intelectuais, meio de esquerda, somos meio bem de vida
e nos dispomos a pagar caro por aquilo que tem cara de barato). Os donos
que não entendem qual é a nossa, diante da invasão, trocam as mesas de
lata por umas de fórmica imitando mármore, azulejam a parede e põem um som
estéreo tocando reggae. Aí eles se dão mal, porque a gente odeia isso, a
gente gosta, como já disse algumas vezes, é daquela coisa autêntica, tão
Brasil, tão raiz.

Não pense que é fácil ser meio intelectual, meio de esquerda em nosso
país. A cada dia está mais difícil encontrar bares ruins do jeito que a
gente gosta, os pobres estão todos de chinelos Rider e a Vejinha sempre
alerta, pronta para encher nossos bares ruins de gente jovem e bonita e a
difundir o petit gâteau pelos quatro cantos do globo. Para desespero dos
meio intelectuais, meio de esquerda que, como eu, por questões
ideológicas, preferem frango à passarinho e carne-de-sol com macaxeira
(que é a mesma coisa que mandioca, mas é como se diz lá no Nordeste, e
nós, meio intelectuais, meio de esquerda, achamos que o Nordeste é muito
mais autêntico que o Sudeste e preferimos esse termo, macaxeira, que é bem
mais assim Câmara Cascudo, saca?.

- Ô Betão, vê uma cachaça aqui pra mim. De Salinas quais que tem?

* João Werner. Texto integrante do volume As Cem Melhores Crônicas Brasileiras,
organizado por Joaquim Ferreira dos Santos.

Bar ruim é lindo, bicho
* Antonio Prata

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